Mauro Luiz B. Marques
O voto bronca
O quadro revelado em 7 de outubro
é dramático, tem uma origem multifacetada e as consequências, sólidas, serão
graves. Apesar das diversas opções no campo liberal e conservador a
concentração dos votos no candidato mais retrógrado entre todos traz a opção
por um divórcio inconsciente do eleitorado
com os partidos da ordem e de sustentação da Nova República. O regime
instalado entre 1984-1988, está em franca decadência, embora não superado
plenamente.
Curiosamente, a missão
conspirativa e transformadora está nas mãos reacionárias e autoritárias. Tal
paradoxo não é de difícil compreensão, pois quem está na ofensiva política e argumentativa é o campo conservador,
tendo como adversária uma esquerda de perfil defensivo, como nunca visto, e com
respostas limitadas à imensa crise na qual ela tem parcela de responsabilidade,
embora não exclusividade.
Neste contexto, inimaginável anos
atrás, temos uma direita que quer “mudar
o que está aí, tá ok?” e uma esquerda que defende os valores essenciais da democracia
e do regime, em decadência. Se reduz o espaço
da racionalidade, que dá lugar a um debate de baixa qualidade e com frases
limitadas que buscam explicar um todo complexo. Mais impressionante é a
vitória de um candidato ausente nas ruas, convalescente em casa ou no hospital
que atingiu expressiva votação, praticamente irreversível, especialmente considerando
que Haddad é visto como ‘situação’ e responsável por parte da crise. O uso das
redes sociais, vasto território liberal e conservador, foi decisiva. Só não
percebeu isso antes quem não quis.
Verdade
também que a falência do governo Temer contribui para tal cenário, enterrando
partidos mais orgânicos ao governo que emergiu do impedimento de Dilma.
Bolsonaro, embora votando essencialmente as principais pautas conservadoras de
Temer, manteve-se distante do Planalto.
Fascistas
x comunistas?
No Brasil, conceitos políticos
que deveriam ser tratados com critério viram slogan político de baixa
qualidade. Não existe, neste momento, ameaça fascista ou comunista a partir do
resultado do segundo turno. De difícil definição, parece pacífica a ideia de
que o modelo fascista típico da Europa dos anos 1930 não teria mais espaço de
repetição plena. Vale estudar e refletir sobre os conceitos de neofascismo, distinto do seu primo
original de 80 anos atrás. Abaixo desta reflexão, compartilhei parte do
conceito de Humberto Eco sobre o tema que me parece aplicável (1).
A política neofascista necessariamente não elimina o processo democrático, embora o limite e o cruze
com violência. Um governo Bolsonaro poderá conviver com o regime atual e não
destruí-lo plenamente, o que já seria uma contradição com a votação no contexto
de crise da Nova República. Bolsonaro e o PSL não pretendem, inicialmente, refundar
a República.
Por outro lado, continuando a
crise, a possibilidade de uma saída autoritária torna-se uma ameaça evidente
como nunca, especialmente uma
intervenção militar a partir de um chamado do chefe do Executivo se traduz como
uma real alternativa antidemocrática.
Aliás, a crise deve continuar. É muito
improvável que o choque liberal radical proposto por Bolsonaro traga solução
para o principal elemento da atual crise: o desemprego e a baixa renda de boa parte
da população. As tentativas de Temer já demonstraram que não se soluciona tal
cenário com a resposta ortodoxa radical.
Bolsonaro
será vitrine
Um governo Bolsonaro, caso
concretizado, terá que sair da cômoda situação de crítica a partir de frases
rasas e limitadas para ação ante um contexto importante de dificuldades. Seus
eleitores querem um choque de transformações rápidas. Não é verdade que seus
apoiadores desejem o estado mínimo ou
tenham concordância absoluta com os ataques sociais enrustidos no discurso raso
e infantilizado de seu candidato. Existem estudos importantes sobre o
pensamento desta massa apoiadora das saídas libero-conservadoras que demonstram
isso.
A crise vai continuar e se ele
não conseguir aplicar um projeto autoritário por fora do regime, não terá
sustentação nem governabilidade. Este é o principal limite do projeto
bolsonariano, muito centrado em sua figura, pois exclui e desautoriza o
vice-presidente e seu ministro da economia, homem forte do Executivo, ao que
tudo indica. O combate à homofobia e ao racismo do candidato, embora corretas,
ocupam quase que exclusivamente o debate, escanteando o tema concreto da gestão
da crise, para a qual ele não tem saída no horizonte. Não se reverterão votos
de forma expressiva a partir do tema identitário e das mal chamadas ‘minorias’,
sem cruzar com a saída para a crise do país. Mas, tudo indica, a situação
ultradefensiva da massa crítica a esquerda não se reverterá nestas duas
semanas.
De qualquer forma, desde já pode
se preparar a resistência, ter clareza do cenário que nos aguarda sem substituir o conceito adequado pelo
slogan politiqueiro. A esquerda pode
voltar a ocupar um lugar de destaque na disputa política no próximo período:
temas como segurança pública e corrupção precisam de uma atenção e uma proposta
efetiva e adequada sob a ótica socialista e classista. Mais importante,
ainda, é voltar a ter espírito
conspirativo e reascender a esperança de mudanças no país por uma lógica oposta
a de Bolsonaro. Isso hoje não existe, definitivamente, e é um dos
principais discursos conservadores, embalado pelo medo da violência que cresce.
Qual a proposta pra combater a
corrupção por parte da esquerda? Apenas ‘fortalecer as instituições’ não parece
ser suficiente. Os limites da gestão
petista em mais de uma década estão cobrando um preço alto agora. Participar
do modus operandi e considerar que
autocrítica é uma “exigência da mídia golpista” é um erro fatal e simplório. Não
se trata de culpabilizar exclusivamente um partido, com certeza, mas, não reconhecer
seus limites e erros é o caminho das derrotas permanentes.
Muitas vezes, quem não reconhece seus erros pode crer que
não errou e tende a responsabilizar apenas os outros: na sequência, segue com a
mesma concepção política que colaborou para o afastamento de milhões que
votaram em Lula-Dilma e hoje optam por Bolsonaro. Certamente eles não se
tornaram fascistas de ‘carteirinha’, mas foram envolvidos por respostas
concretas pelo campo ultraconservador que agora está muito perto de chegar ao
poder da República num cenário de forte crise.
( 1) Em
14 tópicos, Humberto Eco disserta sobre características do fascismo após a
guerra. Certamente vale a análise de suas concepções: “1. A
primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo.
Não somente foi típico do pensamento contra reformista católico depois da
Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao
racionalismo grego clássico. (...)
É
suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os
principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos
tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais importante fonte teórica da nova
direita italiana Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios
de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano
(...). 2. O
tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas como os
nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em geral recusam a
tecnologia como negação dos valores espirituais tradicionais. Contudo, embora o
nazismo tivesse orgulho de seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade
era apenas o aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na
“terra” (Blut und Boden). A recusa do mundo moderno era camuflada como
condenação do modo de vida capitalista, mas referia-se principalmente à
rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da depravação
moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. 3. O
irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem
nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é
identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels
(“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de
expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As
universidades são um ninho de
comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma
de Ur-Fascismo. Os intelectuais
fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura
moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais. 4. Nenhuma
forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera
distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a
comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos
conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição. 5. O desacordo é, além
disso, um sinal de diversidade. O
Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo
da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se
tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por
definição. 6. O Ur-Fascismo provém da frustração
individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às
classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou
humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos.
Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em
pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo
encontrará nessa nova maioria seu auditório. 7. Para
os que se vêem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que
seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país.
Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma
identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô,
possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O
modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o
complô tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor
objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora. (...) 8. Os adeptos devem
sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu
era criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”:
comiam mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são
ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua
assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar
o inimigo. Assim, graças a um contínuo
deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes
demais e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder suas
guerras, pois são constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a
força do inimigo. 9. Para o Ur-Fascismo não há luta
pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o
inimigo; o pacifismo é mau porque a vida
é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de
Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados,
tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle
do mundo. Uma solução final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma
idade de Ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder
fascista conseguiu resolver essa contradição. 10. O
elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto
fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os elitismos
aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo
não pode deixar de pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao
melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo
cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem
existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu poder não foi obtido
por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se
na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um
“dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo
um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus subalternos e cada
um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados. Tudo isso reforça o
sentido de elitismo de massa. 11. Nesta perspectiva,
cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é
um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este
culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que
o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente normal
diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos
crentes, diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O
herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor
recompensa para uma vida heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente
pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das
vezes levar os outros à morte. 12. Como tanto a
guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista
transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma
condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à
homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói
Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra
são devidos a uma inveja pênis permanente. 13. O
Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma democracia, os
cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado
de impacto político do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são
acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm
direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que
exprime “a vontade comum”. (...) Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou
internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode
ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em
virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos”
governos parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini
no Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia
surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”. De fato, ele logo
encontrou alojamento melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o
Parlamento. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento
por não representar mais a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de
Ur-Fascismo. 14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”.
A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc,
o Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas
formas de ditadura. Todos os textos
escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe
elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e
crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de
novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular”.
Disponível completo em <https://jornalggn.com.br/noticia/umberto-eco-14-licoes-para-identificar-o-neofascismo-e-o-fascismo-eterno>