sábado, 11 de maio de 2013


 “A Ira de Deus ou a Condenação pelos Homens”
                                                                                    (Jorge Amaral)
      
   As primeiras notícias sobre a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) já anunciavam, com ênfase, a questão sócio-cultural, relacionada à discriminação do suposto grupo de risco a que estava circunscrita a doença nos primórdios de sua existência: homossexuais, hemofílicos, refugiados e usuários de drogas injetáveis. Hélio Costa, por exemplo, então jornalista da Globo, nos “pintava”, de Nova Iorque, em 1983, o quadro dramático da mais nova “peste” a ameaçar a existência humana. Descrevia a AIDS como uma doença misteriosa, responsável pela epidemia mundial (sic) mais violenta do século XX e informava alguns dados relativos à síndrome, nos E.U.A. e no mundo, nos anos 80: nos Estados Unidos, onde foram registrados, na época –, principalmente, em Nova Iorque e em São Francisco –, 90% dos casos, das cerca de mil pessoas que haviam contraído o vírus, no período de 18 meses, quinhentas morreram. A epidemia já se alastrava, então, por 29 estados americanos e 15 países. A rápida evolução da doença nos E.U.A. – 1978: 4 casos; 1979: 9 casos; 1982: 700 casos – e seu caráter epidemiológico com o registro de cerca de 70 casos na Europa Ocidental, 20 distribuídos entre o Canadá, o Haiti e as Ilhas do Caribe e alguns poucos já emergindo na América do Sul preocupavam demasiadamente as autoridades sanitárias ao redor do mundo. Na época, segundo a matéria de Hélio Costa, o desconhecimento das causas que originaram a doença; as dificuldades de diagnóstico – somente após dois anos é que surgiam, segundo pesquisadores da época, os primeiros sintomas – e, a falta de programas de prevenção e de tratamento (usava-se, então, o Interferon e/ou o transplante de medula óssea), assim como, as características dos ditos grupos de risco – de cada dez pessoas que contraíam o vírus, nove eram homens ou hemofílicos, ou refugiados haitianos, ou homossexuais (70%), ou ainda usuários de drogas injetáveis (25%) –, levaram à discriminação social contra aqueles que se enquadravam nesses grupos a ponto de as autoridades sanitárias americanas, por falta de exame para diagnosticar o vírus, proibirem, por medidas de segurança da saúde pública, a doação de sangue desses grupos de risco e, a doença passar a ser, popularmente, conhecida como a “praga gay”, a “ira de Deus”, etc.. Consequentemente, a doença passou a se alastrar, rapidamente, pelo mundo, transformando-se, em pouco tempo, em uma pandemia sem precedentes. As pesquisas concentravam-se, então, em três áreas diferentes: a epidemiologia, para entender como e por que a doença se alastra tão rapidamente; a imunologia, para saber como o vírus ataca nosso sistema imunológico e, terceiro, o tratamento para o descobrimento da cura. Nesse ínterim, entre a descoberta dos primeiros casos; o desenvolvimento de pesquisas para entender todos os aspectos relacionados às causas e às consequências da moléstia; o surgimento dos primeiros exames de sangue para diagnosticar a presença do HIV e dos programas públicos de conscientização e, o desenvolvimento de drogas para o tratamento e a cura, muitas pessoas pereceram, sofrendo, além da doença, o preconceito de outros e o contra si mesmas. Assim, um grande número de pessoas, considerando que a doença afetava apenas aqueles enquadrados nos grupos de risco, passaram a ser infectadas, aumentando a disseminação e deslocando o foco tanto das pesquisas como dos programas públicos sobre a doença.

A AIDS na África                                                                                                                            
     Atualmente, o quadro alterou-se em países centrais como os Estados Unidos, os países europeus e mesmo o Brasil, onde a AIDS já é considerada uma doença crônica, devido às campanhas de prevenção e de tratamento, contudo, na África – onde a pandemia tem causado a morte de uma geração inteira de pais, levando avós e primogênitos a assumirem as responsabilidades por seus netos e irmãos órfãos (WATKINS, 2010), transformando, por conseguinte, o formato de família nas partes mais afetadas do continente e baixando, inclusive, a expectativa de vida, com queda estimada de 29 anos, para 2005, em Botsuana e de 66 para 41 anos de idade no Zimbábue, por exemplo, segundo pesquisa da ONU –, fatores como a cultura, a religião e a pobreza fizeram com que a AIDS se alastrasse ainda mais rapidamente.                                                                                                                       
     O geógrafo Eduardo de Freitas, no site Brasil Escola, fornece-nos alguns dados referentes à situação da AIDS na África: de cada cinco mortes uma é em decorrência da AIDS; na Zâmbia e na África do Sul cerca de 20% da população está contaminada; em Botsuana, 39%; em Lesoto e Zimbábue, 20% (dados da OMS). No Quênia, onde 10% da população encontra-se infectada, o governo chegou, ingenuamente, a solicitar às pessoas que deixassem de fazer sexo por dois anos para diminuir a expansão do vírus. As mulheres jovens são as maiores vítimas da AIDS na África, provavelmente, devido, entre outros fatores, à precocidade da primeira relação sexual, assim como, do primeiro casamento, normalmente, com homens mais velhos. Todos esses fatores sócio-econômicos e culturais, relacionados entre si e aliados à histórica questão territorial, agravada com a colonização no século XIX, que continua influenciando os altos índices de pobreza, as situações de fome, as epidemias e os conflitos civis, propiciaram o rápido alastramento da doença no continente, como já mencionado, colocando o mundo todo em situação de permanente alerta em relação à AIDS no continente africano. O Brasil, por exemplo, que possui um dos melhores programas de tratamento da AIDS no mundo, tem procurado compartilhar sua experiência na área com alguns países africanos, investindo na transferência de seu modelo de prevenção e sistema de tratamento, assim como, na produção de remédios in loco – mais de vinte antirretrovirais devem ser produzidos por fábricas brasileiras em Moçambique (Carvalho, 2012).

O Sucesso do Programa Brasileiro de Tratamento de HIV/AIDS
        
    A experiência brasileira tornou-se possível, graças a um complexo jogo de xadrez que colocou em cheque o sistema de patentes dos antirretrovirais em 2001, 2007 e 2011; ao seu regramento legislativo, que aprovou a Lei de Propriedade Industrial Brasileira, nº 9.279, de 14/05/1996, atribuindo-lhe o direito de produzir medicamentos localmente em casos de utilidade pública ou quando o laboratório detentor das patentes não produz o remédio no país, conforme está disposto no artigo 71 (SOUZA, 2013); ao atendimento abrangente dos pacientes, possibilitado pela rede do Sistema Único de Saúde (SUS) e, sobretudo à política externa, que através de seu corpo diplomático soube se valer do poder do “soft power” brasileiro para convencer atores internacionais, como a ONU e países europeus, por exemplo, a acreditarem e investirem no projeto do país de acesso universal aos remédios para o tratamento da AIDS. Esse sucesso do Brasil faz-nos crer que, quando usados com responsabilidade, a quebra de patente e/ou o licenciamento compulsório de medicamentos devem, sim, ser usados como ferramenta da política externa dos países mais afetados por questões endêmicas de saúde, possibilitando, assim, o acesso dos mais carentes e necessitados ao tratamento de suas moléstias. Esse pensamento está, certamente, alicerçado no direito humano à saúde, que deve sobrepujar preconceitos reducionistas e questões econômicas privadas ou públicas em prol da saúde pública de todas as nações. 
  
Referências


_______________. AIDS na África. In: Revista ZERO HORA, 13/03/2001 pp. 04/05. In:  http://www.webciencia.com/10_africa.htm (consulta em 01/05/2013).

_______________. AIDS – Primeiras Notícias (1983). In: http://globotv.globo.com/rede-globo/memoria-globo/v/aids-primeiras-noticias-1983/2220390/ (consulta em 01/05/2013).

_______________. O que move a epidemia na África? Do Relatório sobre a epidemia global do HIV/AIDS - UNAIDS - Jul.2002. Tradução de Maria Cristina Itokazu, 2005. In: http://www.fsc.ufsc.br/~canzian/bau/aids/africa.html (consulta em 01/05/2013).

BEZERRA, Andocides. Brasil vai produzir medicamento para Aids na África. In: http://www.fenafar.org.br/portal/medicamentos/62-medicaments/1612-brasil-vai-produzir-medicamento-para-aids-na-africa.html (consulta em 01/05/2013).

CARVALHO, Fábio. Brasil vai inaugurar na África fábrica de remédio contra Aids. 180 Graus, 2012. In: http://180graus.com/noticias/brasil-vai-inaugurar-na-africa-fabrica-de-remedio-contra-aids-542626.html (consulta em 01/05/2013).

FERREIRA, Fernanda Machado et al. África de ontem, África de hoje, Resquícios de Permanência?. In: Revista de História Contemporânea, nº 02, mai-out 2008. In: http://www.revistacontemporaneos.com.br/n2/pdf/africa3.pdf (consulta em 01/05/2013).

FREITAS, Eduardo de. A AIDS na África. In: http://www.brasilescola.com/geografia/a-aids-na-africa.htm (consulta em 01/05/2013).

SOUZA, Cláudio Cesar Dutra de. In: http://www.moodle.unisinos.br/file.php4787/SAUDE_ /INTERNACIONAL/SEMANA_1/Silvia_e_Claudio_Saude_sem1_texto.pdf (consulta em 01/05/2013).

TEICH, Daniel Hessel. Número de vítimas da AIDS na África já é quase igual ao da Peste Negra na Europa medieval. In: Revista VEJA, 09/06/1999. In: http://wWw.webci encia.com/10_africa.htm (consulta em 01/05/2013).

WATKINS, Alex. Afrigrand tackles AIDS in Africa. In: The Cascade, 11/11/2010. In: http://ufvcascade.ca/2010/11/11/afrigrand-tackles-aids-in-africa/ (consulta em 01/05/2013).

2 comentários:

  1. Texto produzido por Jorge Amaral, sob orientação do Professor Mestre Cláudio Cesar Dutra de Souza, para o curso de Especialização em Relações Internacioais e Diplomacia da Unisinos (2012/2013) - Unidade Temática: Saúde Internacional

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  2. Excelente abordagem sobre a evolução da doença desde os anos 80 até os avançados coquetéis que hoje em geral estabilizam o vírus no organismo.
    Tenho a impressão que a sobrevida por esta via talvez não estimule os grandes laboratórios a investirem na cura ou em pesquisas neste caminho.
    Os laboratórios embora recebam por vezes recursos públicos são privados e obedecessem a lógica do mercado, onde nem sempre a cura dá mais lucro.

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